Aonde vais, meu Marajó? Um alerta que ecoa por décadas

Há livros que nos atravessam como um rio atravessa a paisagem: silenciosos à primeira vista, mas com uma força transformadora que só se percebe com o tempo. Foi o que senti ao reler o capítulo Marajó, onde vais?, da obra Marajó: a Ditadora da Água, do padre Giovanni Gallo. Escrito na década de 1970, o texto é mais atual do que nunca. E talvez mais urgente.

Naquela época, o autor já apontava mudanças profundas na região do Marajó provocadas não apenas pela natureza, mas principalmente pela ação humana. O padre Gallo se referia à região como "a Ilha do Marajó", uma expressão comum em seu tempo, antes da popularização do termo arquipélago do Marajó. Mas, independentemente do nome, o que ele revelou continua dolorosamente verdadeiro: o progresso, quando não respeita a cultura e os ritmos de um povo, pode ser devastador.

O texto começa com uma constatação simples, porém poderosa: o Marajó está em constante transformação. A ilha, ancorada na foz do Amazonas, sempre conviveu com a força das águas, com os ciclos da cheia e da seca. Mas nas últimas décadas, o que tem causado maior impacto não é mais a natureza — e sim o chamado progresso.

Gallo descreve a degradação ambiental com um lirismo inquietante. Fala da água antes limpa, agora poluída. Dos peixes, que sumiram. Dos jacarés, que cumpriam um papel ecológico essencial, também desaparecendo. “Poucos sabem que o jacaré faz na água o que o urubu faz em terra”, escreve. Era o faxineiro da natureza, o limpador dos rios. E agora, sem ele, o ecossistema perde o equilíbrio.

Mas o livro não se limita à crítica ambiental. Ele aponta o descompasso entre o avanço tecnológico e a sabedoria local. Chegam as máquinas, os frigoríficos, os grandes projetos agropecuários. A economia se agita, mas o caboclo perde o sono. O boi engorda, o peixe desaparece. O comércio se moderniza, mas a identidade cultural se dilui. Em uma metáfora cortante, o autor observa que “fizeram até canais para regulamentar as águas”, mas o problema permanece: ou falta água, ou sobra. Na medida certa ela nunca está.

Essa metáfora também serve para falar das pessoas. O morador do Marajó troca farinha por uma peruca barata, sonha com a cidade, com Belém, mas perde sua ligação com a terra, com seu tempo — o tempo próprio do Marajó, mais lento, mais atento, mais conectado à natureza. E é exatamente isso que o autor questiona ao final do capítulo: Aonde vais, meu Marajó?

Essa pergunta ressoa como um grito de alerta. Um aviso de que, sem educação, cultura e respeito à própria história, um povo pode perder sua identidade mesmo cercado de promessas de desenvolvimento. O texto é um chamado à consciência: o que o Marajó precisa não é de máquinas ou “açudes”, mas de escolas, de oportunidade real, de promoção humana.

E aqui está a parte mais perturbadora: embora o texto tenha sido escrito há mais de cinquenta anos, sua denúncia continua atual. Em 2025 ainda vemos o mesmo discurso reaparecendo, com vocabulário mais moderno: progresso embalado em tecnologia, fertilizantes, exportações. Mas por trás das palavras novas, as velhas práticas continuam. O abandono, o descaso e a exploração do território seguem firmes.

O padre Giovanni Gallo escreveu com os pés no chão e os olhos voltados para o futuro. Ele enxergou antes de muitos o que agora se torna evidente: não há progresso verdadeiro sem inclusão, sem escuta, sem respeito ao tempo e à cultura de um povo.

O Marajó — e tantos outros lugares do Brasil — não precisa apenas de crescimento econômico. Precisa de desenvolvimento humano. E isso só é possível com educação, cultura e uma política que veja as pessoas como protagonistas da própria história, e não como entraves ao progresso.

O Marajó pergunta para onde vai. E essa pergunta também é nossa. Para onde vamos, como sociedade, se deixarmos para trás nossas raízes, nossas águas, nossa essência?

Se é para crescer, que cresçamos juntos. Sem esquecer quem somos.

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